Por Teresa Santos

A Saúde tem cor? A pergunta pode até parecer estranha, mas, de acordo com as estatísticas nacionais, podemos dizer que, pelo menos, o acesso à saúde tem cor e ela não é preta. Isto porque as pessoas negras têm piores índices de saúde. E, entre elas, as mulheres negras são o grupo que mais sofre com essa discriminação.

Dados oficiais mostram que mulheres negras morrem mais precocemente do que as brancas e têm taxas maiores de mortalidade materna e infantil. Além disso, sofrem mais com doenças crônicas e infecciosas. A violência é outro problema importante, entre elas, a ‘violência obstétrica’. Mas o que isso significa?

Falamos que uma mulher sofreu violência obstétrica quando ela passou por situações de violação de direitos ao longo da gestação e do parto. Não ter acesso à analgesia no parto (medicamentos para alívio da dor), ter menos consultas pré-natais ou ter uma atenção pré-natal inadequada, não ter seu direito a acompanhante no parto respeitado, tudo isso são exemplos de violência obstétrica.

Segundo o Dossiê ‘Mulheres Negras e Justiça Reprodutiva’ de 2020-2021 da Organização Não Governamental (ONG) Criola, no Brasil, enquanto 37,3% das mulheres brancas recebem medicamento para alívio da dor (analgesia epidural) no parto, a taxa entre mulheres negras é de 27%. Por outro lado, as mulheres negras são submetidas mais frequentemente a manobras desnecessárias para acelerar o trabalho de parto: 38,4% versus 34,0% nas mulheres brancas.

Mas o que está por trás dessas diferenças estatísticas? Para responder esta pergunta, o Invivo conversou com Roberta Gondim, professora e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).

Roberta Gondim, professora e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). Crédito: Arquivo pessoal.

Invivo: Que fatores contribuem para que as mulheres negras tenham índices de saúde piores do que as mulheres brancas?
Roberta: Precisamos voltar algumas casas para entender o que explica essa diferença. A diferença não se localiza em uma inferioridade do corpo negro, em uma falta de adaptação biológica do corpo negro. O que se tem em termos de diferença das condições de saúde da população branca em relação à população negra se deve exatamente a uma produção social e política, que foi historicamente forjada. Essas desigualdades nada mais são do que formas de uma estrutura racista de mundo se expressar.

O racismo é uma herança ou um produto do colonialismo, ou seja, de regimes de governo marcados pela imposição, pela dominação política, econômica e cultural. O racismo é um sistema de poder. E ele se expressa em termos estruturais, institucionais, nas condições de vida e de saúde da população.

Biologicamente, não existem ‘raças’ humanas. O conceito de raça é uma produção sócio-histórica. E, por esta lógica, alguns corpos são destinados à ocupação de um lugar de inferioridade, de desigualdade. E é esta ideia de raça que faz com que negros estejam em desvantagem em termos de saúde e também em condições de vida inferiores.

Pintura 'Ciclo do Ouro', de Rodolfo Amoedo, da década de 1920, evidenciado a supervalorização do homem branco em relação ao homem negro. A obra integra o acervo do Museu Paulista da USP. Coleção Fundo Museu Paulista - FMP. Crédito: domínio público/Wikipedia

Pintura ‘Ciclo do Ouro’, de Rodolfo Amoedo, da década de 1920, evidenciado a supervalorização do homem branco em relação ao homem negro. A obra integra o acervo do Museu Paulista da USP. Coleção Fundo Museu Paulista – FMP. Crédito: domínio público/Wikipedia

Invivo: Na prática, como isso pode impactar a atenção que o corpo negro recebe (ou não) nos serviços de saúde?

Roberta: Na saúde lidamos principalmente com o corpo. E se o nosso racismo é de marca, a marca é a cor do corpo e é sob esse corpo que as políticas e o cuidado operam, aquele corpo que é lido como não tendo o mesmo nível de legitimidade e de significação do corpo branco sofrerá com uma atenção em saúde desigual.

É preciso lembrar ainda que a população negra já têm condições de vida mais precarizadas e, consequentemente, condições de saúde também mais precarizadas.

Assim, quando ela acessa o sistema de saúde, como seu corpo também é lido como um corpo que não tem tanta legitimidade quanto o corpo branco, ela é alvo de um conjunto de ações de saúde que ajudam a intensificar a sua desvantagem.

A mulher negra tem mais desvantagem, por exemplo, no que se refere à violência obstétrica, que também chamo de racismo obstétrico. Outro exemplo é a sífilis congênita.

A sífilis é uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST) causada pela bactéria Treponema pallidum.

Bactéria Treponema pallidum causadora da sífilis. A imagem foi obtida por microscopia eletrônica. Crédito: domínio público/Picryl

Bactéria Treponema pallidum causadora da sífilis. A imagem foi obtida por microscopia eletrônica. Crédito: domínio público/Picryl

No caso da sífilis congênita, a mãe infectada pela bactéria e não tratada ou tratada de forma inadequada transmite a doença para o bebê durante a gestação. Quando o pré-natal é adequado, ele inclui exames para o diagnóstico da sífilis e pode, portanto, evitar a transmissão para o bebê. Mas, o que vemos é que a sífilis congênita é muito mais frequente nas mulheres negras.

A sífilis congênita pode levar ao aborto espontâneo, parto prematuro e, ainda, complicações para o bebê. Pode ocorrer malformação, surdez, cegueira, alterações ósseas, deficiência mental e/ou morte ao nascer. Crédito: Mustafa Omar/Unsplash

A sífilis congênita pode levar ao aborto espontâneo, parto prematuro e, ainda, complicações para o bebê. Pode ocorrer malformação, surdez, cegueira, alterações ósseas, deficiência mental e/ou morte ao nascer. Crédito: Mustafa Omar/Unsplash

Invivo: Por que, entre a população negra, a mulher ainda se encontra em uma posição de maior desvantagem?

Roberta: As desvantagens sociais, as desvantagens históricas se intercruzam, isto é, as camadas de opressão se intercruzam e culminam nas más condições de vida de determinadas ‘sujeitas’.

Tem a raça, mas outros fatores como gênero (feminino ou masculino), origem (de onde viemos) e classe (o quanto temos) também se intercruzam e produzem um conjunto significativo de desvantagens que recai majoritariamente sobre a mulher negra. Por isso, usei ‘sujeitas’ no feminino, porque a mulher negra é quem está na base da pirâmide social.

Invivo: Atualmente, o que tem sido feito para melhorar este cenário?

Roberta: Existem inúmeras iniciativas, movimentos de resistência, principalmente do movimento das mulheres negras. O movimento do feminismo negro tem uma importância enorme na política e também no embate da sociedade.

Temos exemplos maravilhosos de iniciativas que já existem há bastante tempo como a ONG Criola e o Geledés Instituto da Mulher Negra, que são frentes de atuação muito importantes. Eles colocam a questão do racismo como um promotor das desigualdades para as agendas política e de gestão governamental.

Isso sem falar na própria atuação de pessoas envolvidas no setor da saúde, os profissionais e gestores da saúde.

É importante citar também a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), instituída em 2009, que traz a questão do combate ao racismo para a centralidade da atuação política. E ainda as áreas e os comitês técnicos que têm por responsabilidade efetivar as ações da PNSIPN.

Então, são diferentes atores, tanto governamentais quanto sociais, com destaque para o movimento das mulheres negras, que atuam no sentido de reverter essa realidade.

Comitê Técnico de Saúde da População Negra discutindo plano operativo, zika e doença falciforme, outras pautas importantes quando se trata da saúde da população negra. A foto foi feita em 31 de março de 2015. Crédito: Tiago Machado - DGEP/SGEP/MS/Flickr

Comitê Técnico de Saúde da População Negra discutindo plano operativo, zika e doença falciforme, outras pautas importantes quando se trata da saúde da população negra. A foto foi feita em 31 de março de 2015. Crédito: Tiago Machado – DGEP/SGEP/MS/Flickr

Invivo: Na sua opinião, qual o caminho para superar o racismo, especialmente no campo da saúde e, mais ainda, no que diz respeito à mulher negra?
Roberta: A mudança precisa partir da própria sociedade, em uma luta tanto de negras/os como de brancas/cos, cada um a partir de seu lugar social. Por um lado, precisamos de políticas públicas, por outro, de mobilização social, de pressão social. As mulheres negras têm um papel importante nos espaços da saúde, seja na linha de frente da atenção, como também na gestão e na formulação das políticas. É preciso que este grupo seja respeitado em seus saberes e que exercite uma gama de recursos de poder, entre eles, econômicos, políticos, epistêmicos (isto é, relacionados ao saber) e decisórios. Neste processo, é importante a participação efetiva dos brancos, porém o protagonismo é da/o negra/o.

*Parte dessa entrevista foi publicada no jornal impresso Maré de Notícias na edição 142 de novembro de 2022. A reportagem ‘Acesso negado a mulheres negras’, da coluna Raio X da Saúde da Maré, foi feita em trabalho colaborativo entre Teresa Santos, do Invivo, e Samara Oliveira, do Maré de Notícias.

Fontes consultadas:
Silva, MT et al. O acesso a Saúde tem cor e não é preta: revisão integrativa do racismo institucional à população negra. Recima21 –
Revista Científica Multidisciplinar. v.2. n.10, 2021
Disponível aqui.

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra : uma política para o SUS / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social. – 3. ed. – Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2017.
Disponível aqui.

Ministério da Saúde. Sífilis Congênita. Atualizado em 30 de dezembro de 2021. Acessado em 13 de novembro de 2022. Disponível aqui.

 

Data Publicação: 18/11/2022