Fig 1. Mulheres vestidas como aias protestando a favor dos direitos reprodutivos na Argentina. Crédito: TitiNicola/Wikimedia Commons

Por que ‘O Conto da Aia’, obra criada por Margaret Atwood, é um alerta para o risco da perda de direitos para as mulheres?

Você já pensou em viver em um lugar onde mulheres são forçadas a engravidar e proibidas de ler? Esse é o cenário de ‘O Conto da Aia’, livro de Margaret Atwood, publicado em 1985 e que virou uma série de sucesso e um símbolo de protesto.

A história acontece em Gilead, um país fictício. Por lá, o sistema de governo é baseado em princípios religiosos e o corpo feminino é controlado pelo Estado. Entretanto, o que parece ficção tem raízes em práticas reais do nosso presente e passado. Estamos falando de eugenia e misoginia. Enquanto as práticas eugênicas eram ideias discriminatórias do final do século 19 que buscavam a melhoria genética dos seres humanos, as políticas misóginas desvalorizam e promovem ódio contra mulheres. Alguma semelhança com a realidade?

 

Gilead é ficção, mas cheia de sinais da vida real

A autora baseou sua obra em acontecimentos históricos reais. Entre eles, estão a Revolução Islâmica no Irã (1979) e políticas conservadoras nos Estados Unidos. Essas últimas estavam em vigor nos anos 1980 e ameaçavam os direitos adquiridos pelas mulheres ao longo do século 20.

Atwood também se inspirou em símbolos nazistas, em práticas religiosas rígidas e em leis que obrigavam as mulheres a terem um determinado número de filhos, como, por exemplo, a lei instaurada pelo governo totalitário de Nicolae Ceaușescu (1918-1989) na Romênia. Segundo essa legislação, as mulheres romenas eram obrigadas a terem quatro filhos para que o país pudesse progredir. Ou seja, nada do que ela escreveu foi inventado do zero.

 

Fig 2. Manifestação no Irã em 1978. Em 1979, a Revolução Iraniana transformou o Irã, que era uma monarquia, em uma república com um sistema de governo baseado em princípios religiosos. Crédito: domínio público/Wikipedia

 

Mulheres como instrumento de reprodução e propriedade do Estado

Em Gilead, as mulheres são classificadas por função e a fertilidade virou um bem do Estado. Devido à queda na taxa de natalidade causada por poluição, radiação e produtos tóxicos, as poucas mulheres férteis são transformadas em “aias”. E elas têm a função de gerar filhos e dar continuidade à espécie humana. Entretanto, apesar do papel central que ocupam na reprodução, elas são vistas meramente como “úteros de duas pernas”.

E não para por aí! As aias não têm nome, passado nem vontade. Se geram filhos sadios, garantem sobrevida. Se falham, são descartadas. Ou seja, seu valor é determinado apenas pela capacidade de gerar filhos saudáveis. Essa lógica se aproxima de políticas eugênicas reais que consideravam as mulheres uma peça fundamental para melhoria das futuras gerações. Tal como é percebido em ‘O Conto da Aia’, na eugenia, a maternidade adquire um caráter patriótico.

Outra característica do país fictício do ‘O Conto da Aia’ é que o Estado se baseia na fé para defender que as mulheres não devem ter autonomia. Várias passagens da Bíblia são manipuladas para justificar a divisão em castas.

As mulheres não têm o direito de trabalhar, estudar ou circular livremente, tudo em nome da fé. A cor vermelha usada pelas aias também reforça sua função biológica, enquanto o uso de chapéus, conforme é descrito no livro, as impede de ver e serem vistas.

 

O alerta de ‘O Conto da Aia’ permanece atual

Embora ficcional, a distopia de Atwood reflete práticas históricas e debates contemporâneos. O controle do corpo feminino, os discursos “pró-vida”, os obstáculos aos direitos reprodutivos e a desigualdade no acesso à saúde são realidades em muitos países, inclusive no Brasil, onde a autonomia das mulheres ainda é ameaçada por visões conservadoras.

Nos Estados Unidos, o livro voltou a ganhar destaque após a eleição de Donald Trump em 2024. E em diferentes lugares, ‘O Conto da Aia’ virou símbolo da luta pelos direitos reprodutivos femininos. Por isso não há dúvidas de que o livro de Atwood se mantém relevante, principalmente por sua capacidade de provocar reflexões sobre questões sociais e políticas atuais. Mas e você? Acha que o livro tem semelhanças com a realidade?

 

Fig 3. Manifestação em Haifa (Israel) em 2023. Mulheres vestidas de aias protestaram contra o desejo de alguns partidos políticos extremamente conservadores de excluir e discriminar mulheres da esfera pública. Crédito: Hanay/Wikimedia Commons

 

Saiba mais:
O que é eugenia?

A árvore da Eugenia (e a árvore da Antieugenia)

 

Fontes consultadas:

Atwood, Margaret. O conto da Aia. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

Penguin Books. Margaret Atwood on the real-life events that inspired The Handmaid’s Tale and The Testaments. Disponível em: https://www.penguin.co.uk/discover/articles/margaret-atwood-handmaids-tale-testaments-real-life-inspiration. Publicação em: 8 set 2019. Acesso em: 11 jul 2025.

 

Por Thayná Soares de Almeida Vieira (Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde – COC/Fiocruz)

Data Publicação: 10/10/2025