Por: Lygia V. Pereira
Até 1997 e o surgimento da ovelha Dolly, a criação de um embrião animal começava obrigatoriamente com a fusão de um óvulo com um espermatozóide. Essa fusão poderia ser natural ou assistida, como nos processos de fertilização in vitro, porém sem o encontro dessas duas células muito especiais não havia a possibilidade da geração da vida. Dolly foi a primeira demonstração de que a vida animal pode surgir de outra forma: pela clonagem, a partir, não mais de duas, mas de uma única célula de qualquer parte do corpo de um indivíduo adulto. Porém, através desse método de reprodução, ao invés de gerarmos indivíduos inéditos, misturas de seus pais, geramos um clone, uma cópia daquele doador de célula: literalmente uma “reprodução”!
Todos nós começamos como uma única célula, resultante da união de um óvulo e um espermatozóide. No momento da fecundação, é formada dentro do núcleo desta célula a receita única e inédita daquele ser humano – metade vinda do pai, e metade vinda da mãe. Esta receita é o nosso genoma, o conjunto de aproximadamente trinta mil genes, ou instruções, que dirigem a formação e o funcionamento de cada um de nós. A partir daí, esta célula inicial se dividirá em duas, quatro, oito, e assim por diante, de forma que, através de milhões de divisões sucessivas, esta única célula dará origem a um ser adulto, extremamente complexo. E cada vez que uma célula se divide, ela copia todo o seu material genético para as células filhas. Ou seja, cada uma das nossas células contém a receita completa para fazer uma pessoa.
No início do desenvolvimento do embrião, aquelas primeiras células inicialmente idênticas (ou indiferenciadas), começam a assumir características diferentes umas das outras, começam a se diferenciar. Algumas ligam só os genes de músculo, outras só os de sangue, outras ainda só os genes de pele, e assim por diante, de forma a gerarem todos os diferentes tipos celulares presentes numa pessoa. E uma vez tomada esta decisão de identidade celular, as células perdem o acesso a todo o resto de informação genética contido em seu núcleo – ou seja, a receita inteira está lá, mas a célula só consegue realizar a sub-receita específica do seu tipo celular.
Isto até 1997, quando Wilmut conseguiu que uma célula diferenciada, já destinada a ser célula de glândula mamária de uma ovelha, revertesse este processo de diferenciação, sendo assim capaz de reacessar toda a informação contida em seu genoma e dar origem a uma cópia completa daquela ovelha – a Dolly! A partir daí, já foram gerados com sucesso clones bovinos, clones de camundongos e de porcos, cada um deles com um objetivo específico – seja a produção de animais comercialmente interessantes ou a de modelos animais para pesquisa básica.
Dentro deste contexto, eu pergunto: por que clonar humanos? As razões apresentadas até hoje são as mais variadas, e vão desde as escatológicas – “Para produzir doadores de órgãos” ou “Para produzir exércitos de indivíduos superiores”, reminescentes de O admirável Mundo Novo e do Nazismo – até a vaidosa e infantil “Porque podemos”. Mas e se utilizarmos a clonagem como uma opção reprodutiva para casais estéreis, ou mesmo para “ressuscitar” um ente querido, argumentos mais utilizados pelos defensores da clonagem humana? De fato, estas são as razões que mais motivam pessoas a quererem gerar um clone humano. E por que não?
Qualquer medicamento ou prática médica passa por diversos testes em modelos animais para que sua segurança seja comprovada antes de ser aplicado em seres humanos. Este rigor existe para nos proteger de situações como a da talidomida. Descobriu-se um pouco tarde que esta droga, popular nos anos 60 entre mulheres grávidas para curar enjoo, causava o encurtamento dos membros dos fetos na barriga destas mulheres. Quantas crianças defeituosas poderiam ser normais, se a talidomida tivesse sido submetida a testes mais rigorosos antes de ser oferecida à população?
Pois bem, o mesmo se aplica à clonagem, se a mesma vai ser proposta como uma forma de reprodução humana. O que sabemos sobre este processo? Muito pouco (lembrem-se que a Dolly surgiu há somente 4 anos)! E pior, a pouca experiência que temos com a clonagem de animais é desastrosa na grande maioria das vezes. No caso da Dolly, dos 276 embriões manipulados, somente 29 sobreviveram para serem implantados em ovelhas, e destes, somente UM vingou, dando origem à Dolly. Entre os não sobreviventes estavam diversos fetos mal-formados e outros que morreram logo após o nascimento. Este quadro se repete em todas as espécies onde a clonagem foi realizada: para cada clone “normal”, são gerados diversos outros com sérias anomalias. O que faremos com os clones humanos “defeituosos”? Nós estamos preparados para lidar com os subprodutos da clonagem em humanos? Como podemos propor esta modalidade de reprodução assexuada em humanos, quando a pouca experiência que temos por enquanto só nos ensinou que é uma técnica perigosa?
No entanto, a clonagem não deve ser vista como o inimigo público número um. Temos que separar o joio do trigo – existe uma distinção importante entre a “clonagem reprodutiva”, que visa a geração de um indivíduo inteiro a partir de uma célula por reprodução assexuada, e a “clonagem terapêutica”, ou seja, a clonagem com fins terapêuticos, com o objetivo de gerar tecidos para transplantes.
Como assim? Vamos a um pouco mais de ciência. “Célula-tronco” (CT) é uma célula que tem a capacidade de se transformar em diferentes tipos de células. Por exemplo, as CT do sangue, encontradas na medula óssea, produzem todos os tipos de células sanguíneas: os glóbulos brancos, os glóbulos vermelhos, plaquetas, e assim por diante. Uma classe muito especial de CTs são as chamadas células-tronco embrionárias. Como o nome sugere, estas células são derivadas de um embrião nos estágios iniciais do desenvolvimento e por isso ainda não assumiram identidade própria, ainda não se diferenciaram. As CT embrionárias humanas são derivadas de embriões de 5 dias, expandidas no laboratório, e lá podem ser induzidas a se transformar em células sanguíneas, musculares, hepáticas, de pele, células secretoras de insulina, e até em neurônios! Desta forma, as CT embrionárias possuem um imenso potencial terapêutico para as mais diversas doenças humanas.
Porém, em qualquer transplante de órgãos, é preciso analisar a genética do doador e do receptor para saber se eles são imunologicamente compatíveis. Caso contrário, o órgão transplantado será reconhecido pelo sistema imune do receptor como um corpo estranho, e será atacado da mesma forma que o sistema imune ataca agentes infecciosos, protegendo-nos de doenças. O mesmo cuidado tem que se tomar quando formos transplantar CT embrionárias diferenciadas em pacientes. Com o desenvolvimento das técnicas de clonagem, tornou-se possível a criação de CT embrionárias “sob medida”, ou seja CT embrionárias geneticamente idênticas ao paciente. Foi exclusivamente com esse objetivo que foram criados os embriões clonados humanos. Esses não serão transferidos para o útero de uma mulher – o que configuraria a clonagem reprodutiva. Os embriões clonados serão uma fonte de CT embrionárias imuno-compatíveis com aquela pessoa de onde foram retiradas as células somáticas.
É bem possível que daqui a alguns anos, através das técnicas de clonagem, cada um de nós preventivamente tenha suas linhagens de CT particulares estabelecidas. Essas células ficarão guardadas congeladas em um laboratório. Ao longo de sua vida, caso você precise de algum transplante, suas CT embrionárias serão descongeladas, multiplicadas e induzidas a se diferenciarem de acordo com a sua necessidade – se for um caso de queimadura, faremos células da pele; doença de Parkinson ou Alzheimer, neurônios; cirrose hepática, células do fígado, e assim por diante. Assim, quando transplantadas, poderão regenerar aquele órgão/tecido danificado sem o risco da rejeição.
Tecnicamente, a clonagem humana se aproxima mais e mais da realidade. Temos agora que decidir o que fazer com ela. Ao longo da história, a humanidade já esteve nessa posição outras vezes. A descoberta da energia nuclear, por exemplo, nos proporcionou a tomografia computadorizada e a ressonância magnética, e ao mesmo tempo duas explosões de bombas atômicas. Aprendemos pelo menos uma lição: que todo poder deve ser usado com responsabilidade. A clonagem terapêutica revolucionará a medicina, proporcionando tecidos para transplantes que aliviarão as mais diversas enfermidades humanas. Por outro lado, a clonagem como forma de reprodução é comprovadamente um fracasso, e é consenso, na comunidade científica mundial, que não deve ser realizada em seres humanos. Devemos evitar a proibição cega, reminescente da época de Galileu Galilei, e que invariavelmente leva ao atraso da ciência e da melhora da qualidade de vida humana. Precisamos sim é de legislação e vigilância, de forma a introduzirmos o desenvolvimento das células-tronco embrionárias aqui no Brasil, sem ferir direitos nem deveres. Vamos utilizar de forma responsável os novos poderes da clonagem, com fins exclusivamente terapêuticos, para que possamos viver as reais maravilhas deste admirável mundo novo.
Lygia V. Pereira, Ph.D.
Depto. Biologia
Instituto de Biociências, USP
Data Publicação: 30/11/2021