Por: Luis Antonio Texeira e Ana Palma

Com o desenvolvimento do microscópio e as novas descobertas sobre a reprodução dos animais, era de se esperar que a geração espontânea caísse em descrédito. Nada disso, ela sofreu restrições – ninguém mais a responsabilizava pelo nascimento de bebês ou animais domésticos -, mas muitos continuavam relacionando-a ao surgimento de larvas, pequenos vermos e outros organismos pouco visíveis ou invisíveis a olho nu. E a controvérsia continuou durante os séculos XVIII e XIX.

Na década de 1740, o naturalista inglês John Tuberville Needham colocou caldo de carneiro bem quente em um frasco, fechando-o cuidadosamente com uma rolha de cortiça e deixando-o em brasas quentes durante vários minutos, para eliminar eventuais germes. Pouco dias depois, o caldo de carneiro estava povoado de seres minúsculos.

Needham descreveu alguns como semelhantes a pequenas enguias, uma observação que acabaria lhe garantindo o apelido de L’Anguillard ou Homem-Enguia. Ele repetiu a experiência com outros extratos, encontrando resultados semelhantes.

Além de dar novo alento à teoria da geração espontânea, a experiência de Needham tinha outras implicações. Ela reforçava a teoria da epigênese, que propunha que a vida se forma, a cada vez, a partir de material não organizado. Era, assim, um golpe nos pré-formistas, que defendiam que todos os organismos foram criados ao mesmo tempo e que todos os embriões existiam, pré-formados, embora infinitamente minúsculos, no óvulo ou no espermatozóide.

As conclusões do naturalista inglês foram popularizadas por outro epigenesista, Georges de Buffon, diretor do Jardin du Roi (Jardim do Rei) e, possivelmente, o mais influente cientista francês da época. Needham passou a defender a existência de uma força vegetativa como fonte das atividades vitais.

Para o horror de Needham, um padre católico que vinha de uma família que se recusara a aderir ao anglicanismo, o resultado de suas experiências foi utilizado pelos filósofos iluministas, que propunham uma abordagem mecanicista e materialista da vida. Afinal, se a matéria não organizada poderia dar origem à vida, não haveria necessidade de um deus criador.

Entra em cena o polemista

Ao divulgar suas conclusões, Needham acabaria tendo que enfrentar um dos maiores polemistas da época: o escritor, ensaísta e filósofo iluminista François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire.

Embora não fosse um cientista, Voltaire tinha grande interesse pelas ciências físicas e biológicas e fora um dos primeiros e melhores divulgadores de ciência. Foi ele quem popularizou a obra de Newton no continente europeu.

Voltaire colocou-se contra Needham por dois motivos principais. Em primeiro lugar, Voltaire era pré-formista. Além disso, embora tivesse combatido os excessos da Igreja, acreditava em Deus e em um processo contínuo de criação.

Como não podia recorrer a experiências científicas para desacreditar, partiu para o ataque pessoal, tentando destruir a reputação de seu oponente. Mas Needham tinha o apoio de Buffon e seus resultados continuaram a ter aceitação no meio científico, para desgosto do escritor francês. Assim, somente 20 anos depois das experiências do sacerdote inglês, é que Voltaire teria acesso à munição perfeita para seu duelo.

O experimentalista italiano

Na Itália, em 1765, um brilhante experimentalista italiano, Lazzaro Spallanzani,alimentava sérias dúvidas sobre os resultados das pesquisas de Needham, Além disso, como padre, repudiava o uso que os materialistas vinham fazendo das conclusões do inglês.

Assim, esse professor da Universidade de Reggio decidiu repetir a experiência de Needham. Mas aqueceu os frascos em temperatura mais alta e por mais tempo, arrolhou alguns e lacrou outros,derretendo os gargalos na chama. Encontrou resultados diferentes:

1. Nos frascos fechados apenas com rolha, mesmo naqueles que tinham fervido por muito tempo, os microorganismos eram abundantes;

2. Nos recipientes lacrados, que tinham fervido por apenas alguns minutos, havia alguns poucos germes;

3. Já nos frascos que tinham ido ao fogo por muito tempo; não havia nenhum sinal de algum ser vivo.

Spallanzani concluiu que Needham não havia aquecido seus frascos à temperatura necessária para matar os seres que já existiam em seu interior, nem impedido a entrada de novos organismos depois que o líquido esfriou.

Ao saber dos resultados, Needham não admitiu que tivesse sido refutado. Ao contrário, alegou a “tortura” adicional, imposta por Spallanzani ao ferver os recipientes por tanto tempo, tinha enfraquecido e, provavelmente, destruído a força vegetativa da substância, “corrompendo totalmente” o ar presente nos vasos.

Spallanzani, porém, não desistia fácil e tinha certeza de suas conclusões. Assim, repetiu novamente a experiência, utilizando diferentes tipos de extrato. E encontrou os mesmos resultados. Os recipientes arrolhados sempre continham mais organismos, independente do tempo de fervura. Além disso, nos frascos estéreis, quando os líquidos eram expostos novamente ao ar, os pequenos organismos voltavam a aparecer.

Para destruir de vez os argumentos de seu adversário, Spallanzani moeu e tostou diferentes sementes, colocando-as em água destilada e deixando-as em repouso. Se Needham estivesse certo, o processo tinha destruído qualquer força vegetativa existente. Alguns dias depois, ao examinar o líquido dos recipientes ao microscópio, encontrou-o fervilhando de micro-organismos.

Satisfeito com os resultados de Spallanzani, Voltaire escreveu-lhe: “O Sr. desferiu um golpe mortal contra as enguias do jesuíta Needham…Animais não nascidos de uma semente não podem viver por muito tempo. É o seu livro que viverá , porque está fundado em experimentos e na razão.”

A controvérsia sobre a geração não acabou, mas o resultado das experiências de Spallanzani logo foi utilizado na vida cotidiana. A demonstração de que os alimentos aquecidos em recipientes lacrados não se estragavam com o tempo serviu de base para a criação das conservas.

Obs: Inspirado em um módulo da primeira versão da exposição Vida (1995). Curadores: Nísia Trindade, Luis Otávio Ferreira e Luis Antônio Teixeira.

Outras fontes:Hellamn, Hal. Grandes Debates da Ciência. São Paulo, Editora Unesp, 1999.

Kruif, Paul de. Caçadores de Micróbios. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1945.

Data Publicação: 29/11/2021