Fig 1. PCH de Arvoredo (SC), no rio Irani. Crédito: Emilene Pandolfo

 

Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) podem influenciar o modo de vida, a cultura e a saúde física e mental de indígenas e outras populações

Você já ouviu falar em Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs)? São usinas hidrelétricas de pequeno porte. Seu tamanho reduzido, porém, não significa que não causam impactos. Para os povos originários, elas significam uma ameaça de colapso social, cultural e de saúde. A aldeia Toldo Chimbange, em Chapecó (SC), é um exemplo importante das consequências da instalação das PCHs em terras ocupadas por povos tradicionais.

Uma hidrelétrica na aldeia

Desde 2019, o Projeto de Decreto Legislativo 723/2019 busca instalar uma PCH na região. O local escolhido é o rio Irani. Atualmente, já existem Pequenas Centrais Hidrelétricas instaladas neste rio, mas fora de terras indígenas. As PCHs de Arvoredo, Plano Alto e Alto Irani estão localizadas em municípios como Xanxerê, Xaxim, Xavantina e Arvoredo, no oeste do estado de Santa Catarina.

Para a aldeia Toldo Chimbange, o rio Irani representa um espaço de resistência. Ele tem grande importância porque foi nas suas margens que a comunidade conseguiu manter viva a cultura Kaingang. Por vários anos, o povo sofreu com a falta de demarcação de seu território, que só aconteceu ao longo da década de 1980.

 

Fig 2. O rio Irani pertence à Bacia do rio Uruguai e tem 184km de extensão. Crédito: Catarinense fx/Wikimedia Commons

 

A possível construção da usina, portanto, não será apenas uma intervenção física, mas um apagamento histórico. “Quando a gente permite que um empreendimento desse seja implantado, está permitindo que a gente conte a história sem poder mostrar um espaço concreto para as crianças”, explica ao Invivo o professor de Letras João Batista Antunes Kaingang, chamado Kusé (que significa “irapuá”, uma abelha sem ferrão). Para Kusé, o rio Irani é a base de tudo que ele é. “Por boa parte da minha infância, vivemos na barranca do rio. É o espaço em que a gente construiu parte da nossa identidade, uma questão de espaço, de memória”, afirma.

Hoje, o cenário que ameaça essa memória se repete em várias partes do país. Segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), em 2018, o Brasil possuía 427 Pequenas Centrais Hidrelétricas em operação e outras centenas em fase de licenciamento ou construção. Embora apresentadas como alternativas de baixo impacto, algumas dessas obras têm sido instaladas em bacias hidrográficas ocupadas por povos indígenas e comunidades tradicionais. Quando alocadas nesses espaços, a noção de desenvolvimento acaba se transformando em uma disputa por território e sobrevivência cultural.

Ameaças invisíveis: doenças, fome e problemas sociais

Os efeitos decorrentes da instalação das Pequenas Centrais Hidrelétricas vão além. A construção pode causar prejuízos na saúde da população. E a ciência prevê um agravamento.

Para fazer uma usina hidrelétrica funcionar, é preciso construir uma barragem. A barragem cria um lago artificial chamado de reservatório. Essa instalação precisa estar em um nível elevado, pois o movimento de queda d’água gera força para movimentar as turbinas.

Segundo Alexandra Crispim Boing, epidemiologista e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a formação do lago artificial muda completamente o equilíbrio do ambiente. “Quando esse tipo de construção altera o curso natural do rio, surgem áreas de água parada que viram o lugar ideal para mosquitos e outros insetos que transmitem doenças”, afirma ao Invivo. Boing acrescenta que o risco de dengue, malária ou outras infecções depende dos agentes que já circulam na região, mas a oscilação do reservatório agrava a situação.

Além das doenças transmitidas por mosquitos e outros vetores, a epidemiologista alerta para o impacto na segurança alimentar. A pesca e as pequenas roças, que garantem a comida da própria comunidade, são severamente afetadas. A perda da biodiversidade de peixes e a inundação de áreas que antes eram usadas para o cultivo de alimentos levam a uma mudança forçada nos hábitos alimentares.

“Essa população acaba perdendo parte da sua identidade cultural e passa a depender de produtos industrializados e ultraprocessados, o que piora a qualidade da alimentação”, explica. Essa transformação na dieta, que passa a contar com menos alimentos frescos e mais produtos com açúcar, sal e gordura, aumenta o risco de obesidade, hipertensão e diabetes, além de deficiências nutricionais que afetam especialmente as crianças e os idosos.

Construções também contribuem para o colapso ecológico

Há ainda impactos ambientais no caso da instalação mesmo de Pequenas Centrais Hidrelétricas. Paulo Antunes Horta Júnior, professor e pesquisador do Departamento de Botânica também da UFSC, explica que o represamento da água reduz a velocidade do rio e faz com que a matéria orgânica se acumule no fundo. “Esse acúmulo consome o oxigênio da água e cria o que chamamos de zonas mortas — lugares onde os peixes e outros seres vivos não conseguem sobreviver”, detalha.

Com o tempo, essa decomposição deixa a água mais ácida, o que faz com que metais pesados presentes no solo se soltem e contaminem toda a cadeia alimentar. Ou seja, primeiro a falta de oxigênio mata parte da vida aquática; depois, tudo que sobrevive corre o risco de estar contaminado.

Outro problema grave é o represamento dos sedimentos, como a areia. Quando a barragem segura essa areia, ela se acumula na parte de cima do rio, aumentando o risco de alagamentos. Já na parte de baixo, onde ela deixa de chegar, o solo vai sendo levado pela correnteza, o que contribui para a erosão de margens e até de regiões costeiras. “Dependemos visceralmente da água. Qualquer intervenção que interrompa seu curso natural traz impactos que não são nada desprezíveis”, alerta Horta.

Saúde mental e alterações no modo de vida

A instalação de empreendimentos como Pequenas Centrais Hidrelétricas podem ter também um custo psicológico profundo. Alexandra Boing explica que “a saúde mental é severamente impactada, principalmente quando o projeto não é discutido com a comunidade”. Já Kusé expressa esse sentimento de forma contundente: “A gente se sente impotente, porque é como ver o rio morrer e não poder fazer nada. Ele é parte da nossa história, da nossa alma”.

A incerteza sobre o futuro, a perda da terra fértil e a fragmentação do território geram medo e tristeza. “Essa mudança desestrutura as práticas culturais, e isso pesa muito dentro da comunidade”, reforça Boing. Kusé complementa: “Quando mexem no território, mexem com tudo: com a nossa alimentação, com a nossa espiritualidade, com a nossa convivência”.

 

Fig 3. O povo Kaingáng de Toldo Chimbange lutou por demarcação de suas terras entre as décadas de 1970 e 1980. Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Resistência e a ilusão da energia “limpa”

Por muito tempo, as usinas hidrelétricas foram consideradas fontes “limpas” de energia, ou seja, capazes de gerar eletricidade sem emitir gases de efeito estufa ou outros poluentes. No entanto, hoje em dia, já se sabe que existe emissão de gases associada a hidrelétricas, principalmente, à decomposição da vegetação submersa nos reservatórios. O volume de emissão, entretanto, ainda é um tema controverso. Ainda assim, esses e outros impactos ambientais e humanos acabam ficando pouco visíveis.

Embora a eletricidade gerada seja integrada ao sistema nacional de distribuição, os prejuízos ficam concentrados nas comunidades que perdem o território e a qualidade de vida, como já foi identificado em outras pesquisas.

Reverberando essa ideia, o povo Kaingang entende que o preço dessa energia é alto demais. A luta de Toldo Chimbange, que neste ano completa 40 anos de retomada de suas terras, mostra que o verdadeiro desenvolvimento não pode ser medido apenas em megawatts. “O valor do dinheiro é muito inferior ao valor da cultura, ao valor do território e das vivências que nós temos”, resume Kusé.

 

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Fontes consultadas:

Brasil. Agência Nacional de Energia Elétrica. ANEEL habilita 19 PCHs a avançarem nos processos de licenciamento ambiental. Disponível em: https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/noticias/2024/aneel-habilita-19-pchs-a-avancarem-nos-processos-de-licenciamento-ambiental?utm_source=chatgpt.com. Publicação em: 13 set 2024. Acesso em: 15 out 2025.

NEPAM – Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais. Hidrelétricas na Amazônia. Campinas: UNICAMP, [s.d.]. Disponível em: http://www.nepam.unicamp.br/hidreletricasnaamazonia. Acesso em: 15 out. 2025.

Mapa de conflitos – ENP/Fiocruz. Conflitos socioambientais e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz. Disponível em: https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/. Acesso em: 15 out. 2025.

Sayuri Mandai, Silvia; Utsunomiya, Renata; Moretto, Evandro Mateus. Energia limpa? A insustentabilidade da hidroeletricidade frente a impactos socioecológicos e violações de direitos. Diálogos Socioambientais, [S. l.], v. 8, n. 22, p. 57–63, 2025. DOI: 10.36942/dialogossocioambientais.v8i22.1231. Disponível em: https://periodicos.ufabc.edu.br/index.php/dialogossocioambientais/article/view/1231. Acesso em: 15 out 2025.

Brasil. Empresa de Pesquisa Energética. Nota técnica EPE/DEA/SMA 012/2022. Emissão de Gases de Efeito Estufa em Reservatórios Hidrelétricos. Disponível em: https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-673/NT%20EPE-SMA-DEA_012-2022.pdf

 

Por Emilene Pandolfo

Esse texto é fruto de uma chamada de artigos exclusiva para participantes da 3ª edição da “Oficina de Jornalismo de Ciência e Saúde para Comunicadores Populares”, realizada entre 21 e 23 de agosto de 2025 de forma virtual.

 

Data Publicação: 05/12/2025