
Fig 1. Mulheres negras têm direitos reprodutivos negados com mais frequência do que mulheres brancas. Crédito: Getty Images
Por que gestantes negras morrem mais na gestação e têm menos acesso ao pré-natal?
Mães negras morrem duas vezes mais do que mães brancas durante a gravidez ou após o parto no Brasil. Isso é uma das constatações da ‘Pesquisa Nascer no Brasil II: Inquérito Nacional sobre Aborto, Parto e Nascimento’. A investigação, que foi coordenada por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), avaliou dados do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa diferença de mortalidade materna entre mulheres brancas e negras é um dos resultados preliminares referentes ao ano de 2022. O estudo revela como o racismo obstétrico é uma questão importante na nossa sociedade. Mas você sabe o que é isso?
Em entrevista ao Invivo, a historiadora Letícia Mattos, doutoranda da Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz), racismo obstétrico é uma forma de violência física e psicológica. Ele atinge principalmente mulheres negras, mas também afeta outras mulheres como as indígenas e asiáticas.
Apesar de ouvirmos falar muito nesse tipo de violência associada ao parto, esse tipo de racismo pode ocorrer também em outros momentos da assistência obstétrica. Ou seja, a discriminação pode se dar ao longo da gestação, após o parto e até em situações de aborto.
E quem pratica o racismo obstétrico? Os atores podem ser variados. Isso significa que essa violência pode ser praticada por profissionais da área da saúde, como médicos, enfermeiras, parteiras, assistentes de parto como as doulas e outras pessoas da sociedade civil.
Para Mariane Marçal, mulher negra, enfermeira obstétrica, assistente de Coordenação de Projetos e Incidência Política da ONG Criola e mãe, os casos de racismo obstétrico são resultado de um processo profundo. Em entrevista ao Invivo, ela destaca que eles não estão restritos às unidades hospitalares.
Como uma gestante pode identificar que está sendo alvo de racismo obstétrico?

Fig 2. Mulheres negras têm menos acesso ao pré-natal adequado em comparação com mulheres brancas. Crédito: Getty Images
Para Mattos, estar bem-informada é fundamental. “É necessário que as mulheres reconheçam as condutas abusivas por parte de profissionais de saúde. Elas muitas vezes são naturalizadas socialmente, justamente pelo caráter institucionalizado e estruturante do racismo e do sexismo na sociedade brasileira”, destaca. Os relatos de mulheres que já passaram por esse tipo de abuso são, portanto, uma fonte importante de informação.
Existem várias situações que podem evidenciar o racismo obstétrico. A negação de anestesia para a gestante na hora do parto, por exemplo, é uma delas. Assim como, ‘forçar’ a realização de cesária mesmo em casos sem indicação médica e usar práticas inapropriadas. A manobra chamada de Kristeller, atualmente, é considerada uma dessas condutas inadequadas. A estratégia consiste em empurrar a barriga da grávida para facilitar o nascimento do bebê. Segundo Mattos, a manobra é considerada uma violência, pois pode causar danos à saúde da mulher e do bebê. Além disso, não há comprovação científica com relação aos seus benefícios. O uso de medicamentos para induzir o trabalho de parto quando não há indicação também é mais um exemplo.
Há ainda uma série de outras práticas que indicam o racismo obstétrico. “A aplicação de força física desproporcional, a relativização da dor da paciente, o menor uso de analgesia [medicamentos para dor] e a realização de procedimentos não consentidos pela mulher. Um exemplo é a prática excessiva da episiotomia (corte realizado na região do períneo), que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), é recomendada em apenas 10% dos casos de partos complicados”, explica a pesquisadora.
Mattos lembra que o impedimento da presença de acompanhantes durante consultas e partos também configura uma violência. E completa:
– Também é possível identificar ofensas verbais e ameaças que são voltadas, principalmente, para gestantes negras, como falar que a mulher é ‘parideira’, ou seja, que é naturalmente voltada para ter muitos filhos e para a amamentação, desumanizando a gestante. Além disso, comentários como, ‘para fazer não gritou’, ato que relativiza a dor e o sofrimento da paciente.
Segundo a especialista, comentários sobre a cor da pele do bebê e sobre as caraterísticas físicas como os órgãos genitais também são manifestações do racismo obstétrico.
“Tais práticas são exercidas, principalmente, sobre os corpos de mulheres negras pobres, em decorrência da construção histórica de teorias enviesadas que definiam que essas eram menos sensíveis a dor”, destaca a pesquisadora.
De fato, estudos feitos com dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 mostram que as mulheres negras possuem menor chance de iniciar o pré-natal antes das 12 semanas de gestação. Esse grupo também tem menor probabilidade de ter seis ou mais consultas durante a gestação. Vale lembrar que, de acordo com o Ministério da Saúde, um pré-natal adequado deve incluir, no mínimo, seis consultas. Além disso, as mulheres negras têm menor chance de realizar alguns testes como o de detecção do HIV e da sífilis. Elas também tendem a receber menos orientações referentes aos cuidados na gestação e parto.
Raízes são profundas

Fig 3. Historicamente, mulheres negras eram impedidas de cuidar de seus filhos em sociedades escravocratas. Crédito: Getty Images
O conceito de racismo obstétrico surgiu só no século 21, porém Mattos ressalta que a questão diz respeito a um processo muito mais longo. A historiadora, que vem instigando a relação entre escravidão e racismo desde os tempos da faculdade, explica que a discriminação racial não se limita a ações individuais. O racismo é estrutural e institucional, pois consiste em um mecanismo histórico de discriminação presente nas formas de organização social.
Basta um mergulho na história que podemos entender um pouco mais sobre isso. Os corpos das mulheres escravizadas eram apropriados pelo sistema escravista e se tornavam, segundo a pesquisadora, ‘reprodutores’ da escravidão.
As mulheres negras escravizadas também eram desumanizadas. Muitas vezes não podiam cuidar dos próprios filhos, mas eram utilizadas como amas de leite, ou seja, amamentavam os bebês dos brancos.
‘Outro tipo de violência histórica que as mulheres negras gestantes sofreram foi serem submetidas a experimentos dolorosos e sangrentos da medicina, sobretudo durante o século 19’, conta Mattos. E foi nesse período que especialidades médicas como a ginecologia e a obstetrícia se desenvolveram. Com isso, a especialista considera que os conhecimentos sobre obstetrícia e ginecologia já nascem tendo como pano de fundo a discriminação.
Falta de profissionais negros é um problema

Fig 4. Escassez de políticas públicas e legislação contribuem para casos de racismo obstétrico. Crédito: Tânia Rego/Agência Brasil
A ONG Criola atua há mais de 30 anos na mobilização pela garantia de direitos de meninas e mulheres negras. Para Mariane Marçal, que atua na instituição, o racismo estrutural e a falta de profissionais negros em todas as instâncias são um problema. Isso porque promovem um ambiente que facilita o descaso com corpos de mulheres negras, que se traduz no aumento de casos de mortalidade materna nesse grupo.
Para a enfermeira obstétrica, existe grande subnotificação dos casos de racismo obstétrico. “Não existe uma legislação própria para esses casos, sendo esse um dos maiores desafios”, destaca em entrevista ao Invivo.
Marçal considera que ainda faltam políticas públicas voltadas para o combate à mortalidade materna que abordem a questão do racismo obstétrico. Elas seguem escassas, descentralizando a raça do debate.
Apenas em 2024, o Governo Federal lançou uma medida voltada para esse campo: a Rede Alyne – estratégia de reestruturação da antiga Rede Cegonha. A ação tem como objetivo reduzir a mortalidade materna em 25%. Também busca diminuir a mortalidade materna de mulheres negras em 50% até 2027. Mas a iniciativa veio após um episódio triste.
O nome do programa é uma homenagem à Alyne da Silva Pimentel Teixeira, uma jovem negra que estava grávida e morreu vítima de negligência médica. O caso ocorreu no município de Belford Roxo (RJ) em 2002. Em 2007, a família de Alyne entrou com uma ação no Comitê pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) da Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2011, o Brasil foi condenado pelo comitê por não prestar atendimento adequado. Com isso, o país tornou-se a primeira nação condenada por morte materna pelo Sistema Global de Direitos Humanos em todo o mundo.
Para Mariane Marçal, a mortalidade materna é apenas o fim de um longo caminho percorrido por vítimas de racismo obstétrico. Segundo ela, a esterilização compulsória, a aplicação de pontos no pós-partos, entre outras medidas, são maneiras recorrentes de ferir os direitos reprodutivos dessas mulheres. “Não existe uma legislação própria para o crime de racismo obstétrico. Mas ele é uma violência e qualquer uma pode e deve denunciar uma violência na ouvidoria do Estado”, afirma Mariane.
Saiba mais em:
Entrevista: Racismo faz com que a mulher negra receba menos cuidados de saúde
Racismo ambiental: o que é isso?
Como o passado escravocrata ainda afeta a saúde dos homens negros?
Acesso negado a mulheres negras
Fontes consultadas:
Leal Maria do Carmo, Granado Silvana, Bittencourt Sonia, Esteves Ana Paula, Caetano Karina. Nascer no Brasil II: pesquisa nacional sobre aborto, parto e nascimento 2022-2023. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: https://nascernobrasil.ensp.fiocruz.br/wp-content/uploads/2023/11/Dados-preliminares-da-pesquisa-Nascer-no-Brasil-2.pdf
Brasil, Ministério da Saúde. Morte de mães negras é duas vezes maior que de brancas, aponta pesquisa. Disponível em: http://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/novembro/morte-de-maes-negras-e-duas-vezes-maior-que-de-brancas-aponta-pesquisa. Publicação: 23 nov 2023. Atualização: 24 nov 2023.
Lessa MS de A, Nascimento ER, Coelho E de AC, Soares I de J, Rodrigues QP, Santos CA de ST, et al. Pré-natal da mulher brasileira: desigualdades raciais e suas implicações para o cuidado. Ciênc saúde coletiva [Internet]. 2022Oct;27(10):3881–90. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-812320222710.01282022
Agência Gov. Conheça Alyne Pimentel, que inspira programa do SUS para cuidado a gestantes e puérperas. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202409/rede-alyne-conheca-a-historia-da-jovem-negra-que-deu-nome-ao-novo-programa-de-cuidado-integral-a-gestante-e-bebe. Publicação em: 20 set 2024.
Agência Senado. Entenda o caso Alyne. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2013/11/14/entenda-o-caso-alyne. Publicação em: 14 nov 2013.
Brasil. Ministério da Saúde. Rede Alyne: conheça a história da jovem negra que deu nome ao novo programa de cuidado integral à gestante e bebê. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2024/setembro/rede-alyne-conheca-a-historia-da-jovem-negra-que-deu-nome-ao-novo-programa-de-cuidado-integral-a-gestante-e-bebe. Publicação em: 20 set 2024. Atualização em: 12 maio 2025.
*Todos os sites foram acessados em 12 de maio de 2025.
Por Elisa Rios e Teresa Santos
Data Publicação: 15/05/2025