Fig 1. Doenças crônicas, tal como diabetes e hipertensão são mais frequentes na população negra. Crédito: Prostock-Studio/iStock

 

Esse texto é uma adaptação da matéria “Como o passado escravocrata ainda afeta a saúde dos homens negros?”, publicada originalmente no site Maré de Notícias em 1° de outubro de 2023, veículo associado ao site Invivo.

Mortes precoces de Mr. Catra, Mc Sapão e Mc Marcinho, ídolos negros da música brasileira, chamam atenção para a forma como a população negra vem sendo cuidada no país

Em 2022, o município do Rio de Janeiro registrou 1.648 óbitos entre pessoas com 45 a 49 anos de idade, segundo dados do Observatório Epidemiológico da Cidade do Rio de Janeiro (EpiRio). A liderança ficou com os homens, que responderam por 57,2% dessas mortes. E os homens negros aparecem à frente. Dos 943 óbitos registrados entre pessoas do sexo masculino nesta faixa etária, 576 eram pretas ou pardas.

Os resultados do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa-Brasil), que analisou mais de 15 mil pessoas de seis capitais brasileiras nos últimos 15 anos, também revelam dados preocupantes. No início do acompanhamento do Elsa (2008 a 2010), para cada 10 pessoas brancas convivendo com seis ou mais condições crônicas, ou seja, doenças de progressão lenta e de duração prolongada, havia cerca de 13 pessoas pardas e 15 pessoas pretas na mesma situação.

A hipertensão é uma condição crônica. Segundo o historiador Paulo Roberto de Abreu Bruno, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), ela é reconhecidamente um dos agravos que mais acomete a população negra. Anemia falciforme, diabetes mellitus tipo 2 e deficiência de G6PD, um distúrbio genético hereditário que pode levar à destruição dos glóbulos vermelhos após uma doença ou o uso de alguns medicamentos, são outros exemplos de condições mais frequentes na população negra brasileira.

Fig 2. Ao aferir a pressão arterial sanguínea, se observarmos valores iguais ou superiores a 140 mmHg por 90 mmHg, isto é um sinal de alerta! Crédito: Prostock-Studio/iStock

Ele explicou em entrevista que quadros como doença renal crônica e asma também são apontados em pesquisas como sendo de alta incidência na população negra. E, especificamente nos homens negros, os estudos mostram ainda a relevância do câncer de próstata e do glaucoma.

Por que essas doenças?

Segundo o pesquisador da Fiocruz, vários fatores atuam nesse cenário de forma inter-relacionada. A genética, por exemplo, tem um peso importante no caso de algumas doenças, tais como a anemia falciforme, a hipertensão, o diabetes e a deficiência de G6PD.

Mas as condições de moradia, renda, escolarização, entre outros, também são relevantes. Isso significa, por exemplo, que ter ou não acesso à água potável, a saneamento, mobilidade, segurança, lazer também contribuem para o desenvolvimento de algumas dessas doenças.

A alimentação é outro fator importante. “O consumo de produtos industrializados ultraprocessados, bebidas açucaradas, entre outros, em lugar de alimentos saudáveis, ou seja, os hábitos alimentares inadequados exercem forte influência no desenvolvimento ou no agravamento de algumas das doenças citadas”, destaca o professor Paulo.

Fig 3. Se por um lado, uma alimentação rica em verduras, frutas e hortaliças (à esquerda) contribuem para uma vida mais saudável, o consumo de alimentos que passaram por várias etapas de processamento (à direita) pode aumentar o risco de várias doenças. Crédito: wildpixel/iStock

Outro ponto de destaque é o racismo. O pesquisador ressaltou que estudos publicados no jornal da Associação Americana do Coração e da Associação Americana de Saúde Pública apontam que “o racismo está diretamente relacionado ao estresse, visto que os hormônios liberados nesse estado podem levar ao aumento da pressão arterial, o que, por sua vez, se relaciona com a falência renal”.

Barreiras à saúde

Em uma sociedade onde as funções de liderança ainda são predominantemente exercidas pelo sexo masculino (patriarcal), os homens podem ter maior dificuldade em buscar cuidados em saúde devido à rejeição a um papel de fragilidade. Porém, para Paulo Bruno, essa questão é mais relevante para os sujeitos de renda mais elevada. “Com relação ao homem negro, considero que as barreiras sejam muito mais difíceis de serem ultrapassadas”, ressalta.
E, para exemplificar essa dificuldade, questiona: “Como deve pensar um homem negro, cujos antepassados foram mortos e torturados por homens brancos e/ou foram obrigados a servirem até a última força a senhoras brancas, quando se vê diante da necessidade de buscar um atendimento médico que, na maioria das vezes, é feito por pessoas não-negras?”.

A falta de acolhimento dos negros nos serviços de saúde é outro problema, bem como a restrição de tempo. “Parte considerável da população negra em geral e os homens que trabalham para manter suas famílias, em específico, sabem que os seus vínculos de trabalho são por demais precários, de modo que o afastamento rotineiro para a manutenção dos cuidados com a saúde é algo impensável”, destaca.

Mr Catra, Mc Sapão e Mc Marcinho, ídolos negros do funk que morreram antes mesmo de completarem seus 50 anos, são os dados mostrados de maneira personificada quem são esses corpos vítimas – ainda – de heranças coloniais no Brasil. Acometidos por câncer gástrico, pneumonia e cardiopatia/doença renal crônica, respectivamente, os cantores apesar de terem vidas diferentes, carregavam o mesmo passado que toda população negra no país. Fato esse que para o pesquisador Paulo Bruno afeta o cotidiano e a longevidade da vida dos homens negros.

               

Fig 4. À esquerda, MC Marcinho, que morreu em agosto de 2023 aos 45 anos de idade. À direita, Mr. Catra, o cantor e compositor morreu em 2018 aos 49 anos de idade. Abaixo, MC Sapão, que morreu em 2019 aos 40 anos de idade. Crédito: Humor Multishow/Wikimedia Commons, Mídia promocional do programa Samba na Gamboa (TV Brasil), imagem ampliada e remixada por Praxides/Wikimedia Commons e Patricia Figueira/Wikimedia Commons

“O passado escravista afeta sobremaneira o presente da população negra brasileira, sobretudo, se considerarmos que ao fim do escravismo colonial não houve uma reforma agrária no país, um processo que possibilitasse à imensa massa de libertos as condições necessárias para que se estabelecessem com um mínimo de dignidade”, afirma.

Há outros como Mr. Catra, Mc Sapão e Mc Marcinho nas ruas do Brasil, do Rio de Janeiro, da Maré, que no lugar do cuidado com a saúde fica o trabalho. É o que também ressalta o pesquisador. “Nos transportes públicos na cidade do Rio de Janeiro ou nos de outras grandes metrópoles brasileiras podemos conhecer de perto como trabalham, por exemplo, os vendedores ambulantes, negros na maioria, das primeiras horas do dia até o seu término. Se tivermos tempo e atenção para ouvi-los, então, saberemos que muitos se encontram adoecidos, dormem pouco, trabalham muito, não dispõem de tempo para manterem uma rotina de consultas e exames médicos, tampouco, contam com a seguridade social para pensarem em fazer isso depois de uma aposentadoria”.

Há como reverter o cenário?

“Como reverter esse cenário no campo da saúde sem reverter as condições gerais da sociedade brasileira?”, questiona o pesquisador. Complementando que para que mudanças pontuais ocorram, são necessárias as mudanças mais profundas e gerais. No entanto, reconhece que as ações precisam partir de algum lugar. Na área da educação, as cotas raciais nas universidades figuram como um dos possíveis pontos de partida. Já, na saúde, a ampliação da formação crítica de profissionais negros também pode alavancar este processo.

“Também é preciso pensar na transformação do sistema de saúde como um todo, de modo que as pessoas em situação de maior precariedade tenham a garantia de acesso e continuidade nos seus tratamentos e cuidados com a saúde.”, ressalta.

Por Samara Oliveira e Teresa Santos

REFERÊNCIAS

Observatório Epidemiológico da Cidade do Rio de Janeiro (EpiRio). Disponível em: https://epirio.svs.rio.br/paineis/doencas-e-agravos/
Santos LDSFD, Espindola, SP, Bertholy, CRDSS et al. Doenças e agravos prevalentes na população negra: revisão integrativa. Revista Nursing, 2019; 22 (250): 2756-2758. Disponível em: https://revistanursing.com.br/index.php/revistanursing/article/view/290/275

Vasconcelos OV, Francisco TNC e Moura VCS. Saúde do homem negro: uma reflexão teórica. XII COPENE 2022• ST 05. Avanços, barreiras e debates sobre a Saúde da População Negra. XII COPENE 2022. ST 05. Avanços, barreiras e debates sobre a Saúde da População Negra. Disponível em: https://www.copene2022.abpn.org.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjQ6IjU5OTUiO30iO3M6MToiaCI7czozMjoiOWFiMDE0M2FiYWYyMTcwOTIzMjc2MTZjYmIxNDMzZmEiO30%3D 

Rebholz CM, Anderson CA, Grams ME et al. Relationship of the American Heart Association’s Impact Goals (Life’s Simple 7) With Risk of Chronic Kidney Disease: Results From the Atherosclerosis Risk in Communities (ARIC) Cohort Study. J Am Heart Assoc. 2016 Apr 6;5(4):e003192. doi: 10.1161/JAHA.116.003192. PMID: 27053058; PMCID: PMC4859292. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4859292/

Sims M, Diez-Roux AV, Dudley A et al. Perceived discrimination and hypertension among African Americans in the Jackson Heart Study. Am J Public Health. 2012 May;102 Suppl 2(Suppl 2):S258-65. doi: 10.2105/AJPH.2011.300523. Epub 2012 Mar 8. PMID: 22401510; PMCID: PMC3477918. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3477918/

Boletim Especial ELSA Brasil. Disponível em: https://mnubahia.com.br/wp-content/uploads/2023/11/Boletim-Dia-da-Consciencia-Negra-2023-elsa-ufba.pdf

Data Publicação: 22/11/2023