Conheça a história da varíola, primeira e única doença humana extinta no mundo
Sabia que uma das maiores conquistas do ser humano está relacionada à extinção? Mas… Calma! Não estamos falando de nenhum ser vivo, pelo menos, de nenhum ser vivo que tenha células. O grande feito em questão foi a extinção do vírus da varíola.
Há mais de 40 anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarava que a varíola humana havia sido erradicada, isto é, completamente eliminada. A erradicação da doença em todo o planeta foi algo único na história e um dos maiores sucessos da saúde pública.
A história, no entanto, começou há séculos, ou melhor, há milhares de anos…
Da Idade Média ao século XX
O vírus da varíola (em inglês, smallpox) faz parte de um grupo de parasitas chamado de ortopoxvírus. Outro integrante deste grupo que se tornou mais conhecido no último ano é o monkeypox. Segundo a OMS, é provável que a varíola humana já exista no mundo há, pelo menos, 3.000 anos.
A varíola causava febre alta, fadiga, dor nas costas e, às vezes, dor abdominal e vômito. Após dois a três dias, surgiam manchas, principalmente no rosto e nas mãos, e, depois, no restante do corpo. As manchas se tornavam bolhas cheias de líquido e pus e, com o passar dos dias, se transformavam em crostas.
A doença era muito transmissível. O vírus passava de uma pessoa infectada para outra por contato, tosse, espirro, gotículas do nariz ou da boca. O contato com secreções e roupas de vestir e de cama contaminadas também exigia cuidado.
Além disso, era muito letal. A cada 10 pessoas que pegavam a doença, três morriam. A estimativa é que, apenas no século XX, cerca de 300 milhões de pessoas morreram vítimas desta infecção.
Primeira vacina desenvolvida no mundo
Desde o século XVII, já se percebia que as pessoas reagiam de forma diferente ao contato com o vírus: algumas sobreviviam, enquanto outras morriam.
Segundo Tania Maria Fernandes, professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz), estava nascendo a ideia de imunidade, porém, o conceito ainda não tinha um nome. “Várias populações começaram a realizar experiências expondo pessoas à doença na expectativa de induzir uma proteção”, explicou em entrevista ao portal. No entanto, o contato direto com o vírus in natura, ou seja, sem nenhum processamento, acabou levando muita gente à morte.
Mas, o conhecimento foi avançando e, no final do século seguinte, o jogo, de fato, começou a virar!
Em 1796, o médico inglês Edward Jenner (1749-1823) conseguiu criar a vacina antivariólica. Na verdade, esta foi a primeira vacina da história! A vacina de Jenner tinha como base o vírus da varíola bovina: o cowpox, outro primo do vírus da varíola. A grande sacada era que o produto impedia que as pessoas desenvolvessem a varíola humana.
Da criação da vacina à erradicação: um longo caminho
Inicialmente, lembrou a professora Tania, havia uma estranheza, uma rejeição à vacina. As pessoas temiam que ela transmitisse doenças e características do bovino. Este sentimento foi inclusive registrado por artistas. Confere só a charge abaixo!
Com o tempo, a vacina começou a ser mais aceita e foi sendo aprimorada em laboratórios. Começou a ser produzida na pele de bezerros e em ovos com embriões de galinha. Houve ainda o desenvolvimento de técnicas de purificação da vacina.
Na década de 1940, a OMS e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) assumiram o desafio de erradicar a doença. Mais tarde, na década de 1960, novas técnicas ajudaram a ampliar a vacinação. Foi criada uma versão desidratada (liofilizada) da vacina. Mais resistente, o produto passou a chegar a locais mais distantes. Outras novidades foram a agulha bifurcada e o injetor de pressão, que facilitavam a aplicação da vacina. Assim, mais pessoas podiam ser vacinadas em menos tempo.
Figs 9 e 10. Agulha bifurcada. Créditos: James Gathany, USCDCP/Pixnio; mulher é vacinada em São Luís (MA) com um injetor de pressão. Créditos: Acervo COC.
Em 1967, a OMS lançou um plano para erradicar a varíola. E, além da vacinação em massa, deu mais destaque a ações de vigilância, como a notificação e a investigação de casos suspeitos. Passou a intensificar a identificação e a vacinação de pessoas que tiveram contato com o doente (vacinação de bloqueio).
Segundo Tania, na década de 1950, já não havia mais registro de casos de varíola em vários países europeus e também nas Américas, com exceção ao Brasil. Por aqui, o certificado de erradicação só chegou na década de 1970. Entre 1973 e 1978, a OMS concedeu a certificação de erradicação da varíola a 46 países. E, em 1977, a Somália registrou o último caso da doença no mundo. No ano de 1980, a varíola humana foi considerada erradicada em todo o planeta.
E, agora, vamos conhecer um pouquinho mais desta história aqui no nosso território!
A erradicação da varíola no Brasil
A vacina antivariólica chegou ao Brasil no final do século XIX. O Barão de Pedro Affonso (1845-1920) esteve à frente desta empreitada.
Em um primeiro momento, a produção das vacinas era feita pela Santa Casa de Misericórdia no Rio de Janeiro, onde o barão atuava como médico. Posteriormente, o Instituto Vacínico Municipal assumiu a produção e a distribuição das vacinas no Brasil. Foi assim até sua extinção em 1920. Após esta data, esta missão passou a ser do Instituto Oswaldo Cruz.
Desde 1837, a vacinação contra a varíola era obrigatória para as crianças brasileiras. Em 1846, passou a ser obrigatória também para os adultos. Entretanto, a medida não era cumprida, inclusive porque só passamos a produzir vacinas em escala industrial em 1884.
Em 1904, Oswaldo Cruz (1872-1917) sugeriu ao Congresso Nacional um projeto que reforçasse esta obrigatoriedade. Com a nova lei, comprovantes de vacinação passariam a ser exigidos para fazer matrículas em escolas, em trabalhos, para viajar, casar… Também havia multa para quem se recusasse a receber a vacina. Já existia insatisfação popular por conta de reformas que o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos (1836 -1913), vinha promovendo na cidade. O descontentamento só aumentou, culminando na Revolta da Vacina.
Campanhas na segunda metade do século XX
Em 1962, foi criada a Campanha Nacional Contra a Varíola (CNCV). “Apesar de ter este nome, a CNCV não era uma ação, mas, sim, um órgão que tinha autonomia financeira para controle da varíola”, explicou Tania.
Em 1966, a CNCV foi substituída pela Campanha de Erradicação da Varíola (CEV), que atuou até 1970. Com o incentivo da OMS e da OPAS e o direcionamento de verbas, a vacinação foi avançando no Brasil. “Havia vacinação em massa em parques e praças públicas. A população era chamada à rua para se vacinar. Também havia vacinação em escolas, universidades, no trabalho”, lembrou a pesquisadora da Fiocruz.
Em paralelo, houve a instalação de Unidades de Vigilância Epidemiológica (UVEs) no país. Segundo Tania, ocorria também a vacinação de bloqueio. O último caso de varíola humana do país foi registrado no Rio de Janeiro em 1971. E, em 1973, recebemos o certificado da OMS de erradicação da doença.
“A experiência brasileira de erradicação da varíola foi muito promissora. Inclusive, alguns profissionais da Fiocruz, entre eles, o sociólogo José Fernando de Souza Verani (1951) e o médico Cláudio do Amaral Júnior (1934-2019), ex-coordenador da CEV, foram convidados para auxiliar na erradicação da doença em países que, na época, ainda tinham varíola”, contou Tania.
E, não para por aí…Todo o esforço empregado no combate à varíola ajudou a dar o pontapé inicial para a criação do Programa Nacional de Imunização (PNI) em 1973 e do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SNVE) em 1976.
Fontes consultadas:
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Dandara L. Cinco dias de fúria: Revolta da Vacina envolveu muito mais do que insatisfação com a vacinação. Portal Fiocruz. https://portal.fiocruz.br/noticia/cinco-dias-de-furia-revolta-da-vacina-envolveu-muito-mais-do-que-insatisfacao-com-vacinacao#:~:text=Sugerida%20por%20Oswaldo%20Cruz%2C%20tornava,para%20quem%20resistisse%20%C3%A0%20vacina%C3%A7%C3%A3o. Publicado em 9 de junho de 2022. Acessado em 23 de agosto de 2022.
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Por Teresa Santos
Data Publicação: 30/08/2022
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